A dança da sereia

I

Elena era uma sereia diferente. Como as outras, também era humana da cabeça à cintura e tinha cauda de peixe, era dona de uma estonteante beleza e versada em magias ignoradas ou esquecidas pelos habitantes da superfície. Em verdade, o que a tornava peculiar, era o modo como enfeitiçava os homens, o motivo e a frequência com que o fazia.

Suas irmãs, por mera vaidade, enfeitiçavam qualquer rapaz ou senhor desavisado que passasse por perto das águas que elas habitavam entoando belíssimas canções. Até competiam entre si para ver quem delas conseguia atrair mais homens para o fundo do mar. Como era mais enquanto o Sol reinava que os pescadores, marinheiros e banhistas frequentavam aquela praia, durante o dia é que elas emergiam das profundezas.

Já Elena, não encantava ninguém por maldade ou vaidade e nem o fazia com sua voz, que também era bela, mas que pouco era ouvida pelos seres terrestres.

Ela gostava mesmo era de passar a maior parte do tempo dentro d’água, longe do confuso mundo humano, o qual preferia ignorar, por considerá-lo estranho e assustador. Somente subia à superfície quando a Lua cheia subia ao céu.

Assim como o encanto lunar tocava a sensibilidade das marés, também exercia um estranho efeito sobre Elena, que, não se contentava em contemplar o brilho prateado da lua com o olhar. Ao ver o seu reflexo da luz sobre as águas, ela sentia uma intrigante vontade de dançar.

Bastava que esse desejo lhe surgisse que ela subitamente adquiria pernas humanas e a estranha capacidade de andar sobre as águas, como o faz uma bailarina que patina sobre o gelo. Passava, então, a noite toda bailando ao som de uma música que apenas ela mesma era capaz de ouvir.

Porém, embora ela estivesse alheia a tudo que acontecia nas margens que cercavam o seu território, a cadência e a delicadeza de seu bailado faziam com que os poucos homens que por ali passavam à noite, ainda que surdos à música que a embalava, se sentissem igualmente enfeitiçados pelo espetáculo que presenciavam e pela beleza de quem o executava e se entregassem à irresistível vontade de dançar com Elena, afogando-se nas águas antes que ela sequer percebesse que eles estiveram ali.



Somente um homem conseguiu escapar do fim trágico que atingira tantos outros. Um pescador chamado Cristóvão.


II

Assim como Elena se diferenciava de suas irmãs, Cristóvão também era um pescador incomum. Não que não dominasse habilmente a arte de conduzir sua embarcação, de produzir redes e varas de pescar ou de identificar os momentos em que a pesca renderia mais frutos, nisso ele era muito bom, apesar de ainda não ter chegado aos trinta anos. O que o tornava diferente era a sua peculiar sensibilidade.

Enquanto seus colegas costumavam ter uma visão bastante pragmática das dificuldades da vida e do trabalho, que era vista até como bruta e rude, por quem não era do meio, Cristóvão se permitia sonhar e dedicar longos momentos à contemplação das belezas sutis ou ostensivas que capturava em seu cotidiano.

Era por isso que gostava de ir para o seu barco nas noites de lua cheia. Estar ali apenas observando o hipnotizante balanço das ondas, com seu relaxante murmúrio e com o brilho da lua e das estrelas refletido no mar azul, massageava o espírito daquele homem cansado de suas marítimas atividades.

Algum leitor mais atento poderia sabiamente supor que, a quem tem olhos sensíveis mesmo às belezas discretas, seria ainda mais difícil resistir ao encanto que a dança de Elena exercia sobre os homens que a contemplavam. Mas há uma característica de Cristóvão que o fez escapar da morte prematura.

Cristóvão, por sua condição de rapaz humilde, vindo de família pobre, cedo aprendeu a lidar rotineiramente com as frustrações. Na infância, logo aprendeu que os banquetes fartos que apareciam em cenas da novela das oito não eram para o seu bico, assim como aqueles presentes que as crianças dos filmes de natal recebiam em dezembro.

Na adolescência, quando o desejo floresceu em seu corpo, o fato dele ser um rapaz franzino, cambota e bastante tímido fez com que inúmeras fantasias de romance com as belas moças que conhecia não se concretizassem. Ele achava injusto que aquelas meninas ficassem com homens que visivelmente não enxergavam como ele a beleza que havia nelas, seja nos corpos ou em seus trejeitos, mas acabou aprendendo a resignar-se.

Na fase adulta, já sabendo que o mundo era muito maior do que a ilha em que vivia, tinha o anseio de fazer do mar uma ponte que o levasse a novos lugares, novas pessoas e novas belezas. Porém, as persistentes dificuldades que assolavam os pescadores também faziam ele sentir, cada vez mais, que esse anseio jamais deixaria de ser apenas um sonho.

Assim, não é de se estranhar que Cristóvão tenha conseguido conter o impulso que os outros homens naturalmente sentiam de dançar com a encantadora sereia que por ali aparecia nas noites de Lua cheia.

Ciente de que certas belezas são para mera contemplação e jamais alcançarão a dimensão do toque, aquele rapaz, cuja sensibilidade para a beleza era do mesmo tamanho do encanto que a dança da sereia exercia sobre os homens, já se dava por satisfeito apenas com a contemplação daquele espetáculo a que assistia atentamente do seu barco.

Apesar disso, sonhador teimoso que era, Cristóvão, no fundo, alimentava uma secreta esperança de que a sereia notasse o quão forte era o encanto que exercia sobre o seu olhar sensível e, algum dia, se permitisse dançar com ele no seu barco.

Muitas noites de luar se passaram sem que qualquer coisa acontecesse para alimentar a esperança de Cristóvão. Mas, em um dia em que a dança de Elena foi tão bonita que fez lágrimas caírem dos olhos do pescador, aquela sereia – que, com a magia da Lua, era a senhora das águas – percebeu o seu olhar marejado assim que o pranto salgado caiu e se misturou à agua salgada do mar.

Quando os olhos dos dois se encontraram, alguma coisa fez com que Cristóvão passasse a conseguir ouvir a melodia que embalava Elena.  

Não foi apenas sobre ele que esse encontro de olhares teve efeito.

III


Assim como o afeto e a estética tornam suportável e, até mesmo, prazerosa a vida daqueles que não recorrem a ilusões para ocultar as crueldades que existem no mundo, o fato do primeiro contato que Elena teve com o humano ter sido com o olhar contemplativo e meigo de Cristóvão mexeu com os medos que ela tinha dos seres racionais que habitavam a superfície.




A tal ponto que, ao invés de se recolher às profundeza das águas, como se poderia supor que seria a reação instintiva de quem não gostava de gente, ela sentiu um prazer semelhante ao que sente a bailarina quando percebe que todos os olhares do público estão sobre si e, como em hipnose, a seguem por qualquer espaço que ela explore ao longo do espetáculo.


Assim fez Elena. Em um misto de curiosidade e deleite, ela executou os passos mais bonitos que inventara até então, deslizando com suavidade por uma área bem maior da que a que costumava ocupar em sua dança. Perceber os olhos, o pescoço, o sorriso e as lágrimas de Cristóvão (ainda mais emocionado do que de costume, já que agora ele ouvia a música) reagindo àquele que ela sabia que era o seu mais bem elaborado ritual de devoção à beleza da lua fez surgir em Elena uma inédita e estranha empatia por aquele rapaz moreno tão resignado em vê-la apenas de longe.


Ela então se aproximou do barco do pescador e lhe estendeu a mão. Não foi, entretanto, por ela ser a mais linda dentre as sereias ou por espalhar magia por onde passava que Cristóvão atendeu ao seu chamado. Foi porque a mesma empatia que fez com que Elena se despisse dos seus antigos receios e se permitisse até mesmo tocar um ser humano não trouxe apenas música aos ouvidos e ao coração do pescador. Também o fez ter a certeza que nenhum mal lhe aconteceria se se permitisse tocá-la e até mesmo dançar com ela.


Então, no momento em que a mão do homem encontrou a da senhora das águas, nem ela desceu ao chão e nem ele desceu ao mar.


Aquela mesma lua cheia que, ao longo dos séculos, orgulhosamente rege o balanço das marés, como um talentoso maestro, viu tanta beleza no sentimento e no compasso daquele par, que, também sobre eles, exerceu sua irresistível atração, fazendo-os flutuar sob o brilho vivo do luar e das estrelas.


Ainda hoje, alguns casais apaixonados ou amantes com pungentes saudades dizem ter a ilusão de, em noites de lua cheia, ver um casal dançando no céu noturno.


Algumas das belezas mágicas que a noite proporciona somente é capaz de ver quem partilha do mesmo sentimento.


(Felipe Rocha, 3 de janeiro de 2018)

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