O Natal improvisado de Bartolomeu

I

Apesar de já curado da pneumonia, Bartolomeu ainda sentia uma princípio de tosse quando respirava fundo. Ao notar isso, percebeu que foi sábia a ordem do médico de que ele não viajasse para passar o natal com um dos filhos, como fazia todo ano.

Dessa vez, eram os filhos quem iriam passar o Natal na casa pequenina em que foram criados. Isto não assustava Bartolomeu. Embora a casa fosse simples demais, se comparada às residências de seus filhos, ele sabia que os meninos não ligavam para isso, tampouco seus cônjuges.

O que realmente tirava o sossego de Bartolomeu era o fato de ser a primeira vez que receberia os três filhos juntos para celebrar o Natal depois da esposa ter falecido. Nunca foi um pai ausente, mas era sempre ela quem cuidava dos detalhes práticos das celebrações, tais como os enfeites e os comes e bebes. E o pior, como a restrição médica veio com menos de uma semana de antecedência pro natal e Bartolomeu não andava com muita energia para bater perna, tudo teve que ser improvisado em cima da hora.

Pediu ajuda a uma vizinha que adorava organizar a ceia de natal da sua própria casa e que, aqui e acolá, ajudava o velho com os problemas oriundos da viuvez. Ela lhe emprestou uma árvore de natal pequena que mantinha na mesa do seu local de trabalho, um jogo americano e guardanapos com tema natalino e um pequeno presépio, que ele fazia questão que tivesse, por representar o verdadeiro sentido do Natal.

Quanto à comida, ele pediu que a filha mais nova, que chegara do interior na antevéspera de Natal, providenciasse um chester, um salpicão e o que mais ela achasse que deveria ser servido na ceia.

Colocou um vinho na geladeira e comprou uns refrigerantes na mercearia que ficava na frente da sua casa. Lembrou-se, ainda, de separar um CD com músicas de natal instrumentais tocadas em ritmo de chorinho, que o filho mais velho havia lhe dado há uns dez anos.

Na noite do dia 24, quando terminava de se vestir, lembrou-se que havia esquecido do mais importante: os presentes dos filhos. Mas, olhando o seu rosto negro e magricela no espelho, deu-se conta que, não é porque vestira uma camisa vermelha naquela noite, era velho e tinha cabelo e barba brancos que ele tinha que se sentir um papai noel.

Convenceu-se, aliás, que era até melhor não haver presentes porque essa história de papai noel e da necessidade de presentear os entes queridos, na sua humilde concepção, apenas desvirtuava ainda mais o que, para ele, havia de mais importante no Natal.

Quando os filhos chegaram, notou que apenas a filha do meio, que trabalhava como bancária na mesma cidade em que a mais nova trabalhava como professora, vinha acompanhada do marido. O neto, entretanto, não comparecera por ter preferido ficar onde morava e passar o Natal com a família da namorada.

O filho mais velho, que era delegado no Distrito Federal, justificou que, como as passagens de avião de Brasília para São Luís estavam muito caras naquela época do ano, ele achou que seria melhor que a sua esposa e filhos passassem o natal com a família materna por lá mesmo.

Já a filha mais nova, que ainda não tinha nenhum filho, apenas dissera que o marido não pôde ir, sem dar maiores justificativas. Bartolomeu notou que ela desviara o olhar para baixo quando deu a notícia, como se estivesse ocultando alguma coisa, mas respeitou o seu silêncio.

Embora tenha sentido um pouco de alívio pela família não ter comparecido em peso – o que diminuiu o trabalho da organização da ceia -, Bartolomeu olhou para os dois ventiladores que teve que colocar na sala para amenizar o calor que os convidados provavelmente sentiriam, e se sentiu mal por ter feito os seus três filhos e um dos genros passarem um natal incompleto,  longe de suas próprias famílias, apenas para terem a sua companhia no natal.


O sentimento só mudou quando deu meia-noite. 

II

Assim que o relógio anunciou o novo dia, a família se uniu na tradição natalina inventada por Bartolomeu há mais de vinte anos e que era a que ele mais gostava: todos se abraçavam juntos, ao mesmo tempo, e permaneciam em tal abraço por um tempo que, embora não fosse contado, sempre ultrapassava um minuto.

Quando inventou o hábito, ele disse à esposa e aos filhos que aquilo simbolizava o que ele achava mais importante do Natal, que era a união familiar. O próprio Jesus – argumentava Bartolomeu – só sobreviveu ao parto na manjedoura por causa do irrestrito cuidado que seus pais devotaram a ele desde antes dele nascer.

Ele também dizia que, como era comum as pessoas se perderem nos afazeres do cotidiano, deixando de demonstrar o afeto por quem amavam, aquele ato singelo na meia-noite do dia 25 seria uma garantia de que, pelo menos uma vez por ano, cada uma delas demonstraria fisicamente o amor que sentia pelas demais.

Embora não confessasse, a verdade é que, nos anos mais difíceis, aquele gesto era como se fosse o momento dele reabastecer as próprias “baterias”, desgastadas por tantas agruras do mundo e da vida.
E, o que é pior, depois que se tornou viúvo – já há cinco anos -, aquele abraço, algumas vezes, havia sido o único ato de afeto efetivamente significativo que ele recebera no ano inteiro.

Os filhos, por sua vez, também já tinham aprendido a reconhecer a importância da tradição inventada pelo pai, principalmente depois que a pneumonia surgiu e eles temeram, pela primeira vez, que Bartolomeu não resistisse a uma doença. Tanto que nenhum dos três hesitou em ir passar o Natal com o pai, inobstante os sacrifícios que teriam que fazer.

Enquanto se abraçavam, uma coisa inusitada aconteceu: Bárbara, a filha mais nova, começou a chorar bastante. Não o choro discreto de quem se emociona com uma cena bonita, mas aquele pranto que transborda quando algo penetra a barreira interna que o continha.

Quando o abraço se estreitou, para afagar a dor de Bárbara, ela revelou que, há poucas semanas, o marido decidira se divorciar dela e que estava sendo insuportável permanecer na casa que antes era do casal.

Depois do abraço ser suavemente desfeito, Bartolomeu se dispôs a fazer o que achava que era o melhor que fazia como pai, que era conversar com os filhos sobre seus problemas e aflições.
Bárbara deitou-se no sofá, com a cabeça colocada no colo do pai, e, enquanto recebia um cafuné, relatou o episódio das últimas semanas e o quanto a solidão e a dor de ter que reaprender a viver sozinha a machucavam.

A conversa, embora não apresentasse respostas simples às questões que ela enfrentava, ajudou-lhe inundando aquela alma atormentada com um calor humano que tranquilizava o seu coração irrequieto.

Uma hora depois, a caçula já havia decidido ficar com o pai na capital ao longo do mês de janeiro (estadia essa que se prolongaria por tempo indeterminado, embora ela ainda não soubesse na ocasião) e todos já haviam recuperado a alegria que marcava os natais daquela pequena família.

Em um momento em que todos estavam concentrados em uma história engraçada que o marido da sua filha do meio contava, Bartolomeu reparou no sorriso que vinha do rosto de cada um dos seus quatro convidados e levantando discretamente a taça de vinho que bebia e murmurou um inaudível “feliz natal!” para a sua esposa, que ele imaginava que estava observando tudo do outro lado.

Pôs a taça na mesa e teve a certeza de que, de fato, o que há de importante no Natal não tem nada a ver com papai noel, troca de presentes e outras bobagens que passam nos filmes da sessão da tarde.

Mais do que isso, teve a certeza de que ele e a esposa haviam feito um bom trabalho na criação dos filhos e de que ele era feliz.

Foi a vez do seu rosto esboçar um sorriso.

(Felipe Rocha, 25 de dezembro de 2017)

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