Um copo, um cigarro e um beijo
I
Algumas paisagens nunca cansam o olhar, por mais que os olhos envelheçam. O pôr do Sol visto do alto de um prédio na beira da praia de Copacabana era uma dessas. “Cidade maravilhosa és minha... o poente na esquina de tuas montanhas... quase arromba a retina de quem vê”, cantava o Chico, em uns dos versos mais bonitos sobre o Rio de Janeiro que já foram feitos.
Por mais que o Beco das Garrafas carregasse toda uma história, sobretudo para um violonista de Bossa Nova, como eu, ainda preferia aceitar os convites para tocar pros grã-finos que iam fazer um happy hour no “rooftop” daquele hotel.
Das décadas de boemia que marcaram a minha juventude e minha meia-idade, pouco havia restado. Lá pelos idos dos anos 70 e 80, eu ia dormir quase todos os dias de manhã (poucas vezes ia sozinho), depois de ter secado com os amigos algumas garrafas de whisky e de ter fumado alguns maços de cigarro.
Veio, então, o casamento, o filho e o emprego público que fez a música se tornar, durante anos, somente um hobby. Apenas depois da aposentadoria, aos 65 anos, é que consegui voltar para a noite. Mas, ainda assim, com sérias restrições devidamente negociadas com a esposa e com o filho que hoje é médico. Só tenho direito a uma noite de boemia por semana, a uma dose de whisky e a um único cigarro.
Eu bem sei que muitos dos meus amigos de antigamente me considerariam um banana por aceitar todas essas restrições. Mas a verdade é que eu nem me importava. Os efeitos da última ressaca que tive sobre o meu corpo, somados a algumas taxas preocupantes dos exames de sangue dos últimos anos me faziam considerar tudo aquilo razoável.
A saudade da música eu já me acostumei a matar com jantares íntimos que fazia com frequência em minha própria casa, com amigos e parentes, e que não entram na conta das minhas permissões noturnas.
Tive a sorte de, naquele dia, as quatro músicas que a cantora preferia cantar acompanhada apenas do piano terem caído justamente no momento em que o Sol estava se pondo. Aproveitei o intervalo para ir logo tomar minha dose de black label e ir fumar o meu cigarro em uma das largas janelas do local, ao invés de deixar para fazê-lo apenas no final do show.
Ao ouvir “Fotografia” e “Inútil Paisagem” do Tom, degustando os meus pequenos vícios defronte ao poente, percebi que não foi por acaso que a cantora escolheu cantar aquelas músicas naquele exato momento.
Por mais tentadoras que fossem as imagens das mulheres desfilando de fio dental lá na areia, meu olhar não deixou o velho o hábito de se focar nas ondas do mar e no Sol que caía. Ao contrário da beleza das moças de hoje, que serão as senhoras de amanhã, o Sol, o céu e o mar carioca eram meus antigos e permanentes camaradas, cuja beleza era tão persistente quanto o encantamento que ainda provocavam em mim.
Só me distraí quando uma linda jovem que estava ao meu lado, de cabelos loiros e olhos verdes, tocou em meu ombro e me disse: “eu tenho um pedido para fazer”. Quando li o bilhete, vi que, ao invés de escrever o nome da música, ela pôs “Mas seus olhos morenos me metem mais medo que um raio de Sol...”. O olhar penetrante e o sorriso faceiro dela me fizeram ter certeza de que ela se referia aos meus olhos negros e que aquele pedido ocultava um sofisticado convite para algo mais depois do show.
No momento eu só consegui lhe responder: “seu desejo é uma ordem”. Ela piscou e voltou para onde estava. Como as quatro músicas do piano haviam acabado, voltei ao meu posto e seguimos com o repertório planejado.
II
Enquanto tocava cada canção, notei que a garota mantinha o olhar em mim o tempo quase todo. Eu sorri pensando que ser magro, não ter pêlos no rosto, não ser careca e preservar um sorriso elogiável, ajudara a manter um senhor de 65 anos como objeto de desejo de uma jovem que certamente não tinha nem chegado aos trinta.
Embora ”Lígia” já fizesse parte do nosso repertório, ela me mandou um beijo quando começamos a executá-la. Apenas sorri.
No final do show, enquanto eu terminava de fumar a segunda metade do meu cigarro da semana, ela veio a mim para dizer que estava no Rio para participar de um evento que ocorria no hotel e que estava hospedada sozinha no quarto. Disse, ainda, que já havia solicitado uma garrafa de whisky 12 anos para tomarmos fumando uns charutos que ela havia levado para a viagem e que a única coisa que eu precisava levar era o meu violão.
Eu, sorrindo, bati com o indicador direito na aliança da mão esquerda e lhe ofereci um trago, embora ela jamais pudesse compreender o tamanho da cortesia.
Então, aquela dama loira de olhos verdes entrelaçou os dedos com os da minha mão esquerda, na evidente convicção de que uma aproximação física dobraria qualquer resistência que ainda restasse em mim.
Devo confessar que o seu toque e o seu perfume realmente atiçaram minha libido. Mas o conceito de “irresistível”, para mim, já havia se aquietado há bastante tempo, talvez pelos excessos que cometi na minha juventude de músico boêmio e mulherengo.
Quando pensei na cena de eu rejeitando o copo e o charuto que ela me ofereceria e que, honestamente, eu preferiria mergulhar em luxúria com aquela ninfa grega à minha frente no dia seguinte, após uma boa noite de sono – quando ela já estaria dentro de um avião voltando para a sua terra natal -, ficou ainda mais fácil manifestar aquela recusa que, em outros tempos, seria causa de grande arrependimento.
Eu desvencilhei os seus dedos dos meus, mas, antes que ela terminasse de suspirar, eu toquei em seu rosto.
III
Mirei com intensidade o seu olhar (vendo que não era verdadeira a afirmação de que meus olhos morenos lhe metiam medo) e, naquele momento, ficou claro o que ela realmente via em mim: uma imagem romântica e idealizada de um músico coroa, oriundo da boemia carioca, que, com notas e versos certeiros, perfumava as mulheres que conquistava com canções que exaltavam o que elas tinham de belo e delicado; com uma sensibilidade que era rara elas observarem nos homens com quem costumavam conviver e se relacionar.
Eu tive pena e não quis desfazer toda aquela fantasia, que, provavelmente, ela achava que iria dar algumas cores vivas à sua rotina monótona.
Ao invés de me afastar falando de compromisso conjugal ou das restrições que a velhice me impunha, eu simplesmente lhe roubei um beijo, que durou uns poucos minutos. Talvez por ser casado com uma atriz de teatro e cinema, um simples beijo não trazia qualquer perturbação à minha consciência, até por ele conter mais piedade do que desejo.
Ela pareceu atordoada quando percebeu que eu ia embora depois daquele beijo, mas, antes que o sorriso deixasse o seu rosto, eu lhe disse: essa é a melhor memória que você pode levar de mim. Boa noite!
No elevador, eu observei que ela mexia freneticamente no celular, provavelmente compartilhando com as amigas a aventura efêmera que vivera com um músico carioca cujo nome ela nem se preocupou em perguntar.
Quanto a mim, eu fui assobiando uma canção que comecei a compor no elevador, que falava justamente daquele episódio.
“Cada um registra o que vive da maneira que melhor consegue”. Foi o que pensei depois que minha mulher elogiou a música que eu acabara de compor e que ela acabara de ouvir em primeira mão.
Dormi profundamente relaxado e satisfeito pelo saldo daquela noite ter sido apenas o de um cigarro, uma dose de whisky, um beijo e uma canção.
Só não ganhei um parabéns da esposa porque, embora ela tenha reconhecido que havia uma certa nobreza no meu ato de beijar a moça, teve medo de abrir um perigoso precedente.
(Felipe Rocha, 8 de janeiro de 2017)
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