Giz
Não há como evitar as chuvas de fevereiro, isto eu bem sei. Mas não consigo deixar de achar uma maldade do destino o céu nublar e chorar nos dias de aniversário do luto de minha mãe.
Mesmo sendo uma exigente quinta-feira, que requer trânsito e trabalho, o céu cinza, os pingos na janela e o frio acima do normal me fizeram passar a manhã entre as cobertas da minha cama.
Já eram quase onze horas quando finalmente consegui levantar. Se fim de semana fosse, aguardaria
logo o meio-dia e o almoço. Mas não era um dia comum. Ao que seria normal, prefiro fazer um misto-quente na frigideira, com muito queijo e manteiga, e um toddy bem doce. Uma refeição confortável e nostálgica que leva a minha memória aos cafés da manhã preparados por minha mãe, na mesa da cozinha da pequena casa em que fui criada. Quando menina, nenhum sabor se comparava àquele.
Relutando contra a falta de coragem para tomar banho, me enfio em um chuveiro de água quente e lá escorrem as primeiras lágrimas do dia. Sempre tive essa estranha impressão de que as águas se atraem; as do céu, as da terra e as dos olhos.
Fecho o chuveiro e noto que a chuva também encerrou. Isto me anima a vestir um confortável moleton, pegar as chaves e ir para a rua.
Sem que perceba, sigo no rumo da casa que um dia foi dos meus pais; que um dia foi minha. Recordo de minha mãe reclamando, em tom de gracejo, que eu só aparecia por lá quando me convinha ou quando queria alguma coisa. Mais algumas lágrimas escorrem por minhas bochechas. Abro o vidro da janela do carro. O vento frio e o cheiro do mato molhado que ladeia o caminho trazem um afago gostoso que me faz achar que até que estou indo bem, ainda que a sua ausência muito me doa e faça eu me sentir um tanto infeliz, em dias como aquele.
Quando chego à minha antiga rua, me vem com força a memória de uma infância longe de condomínios e de seus muros, longe de smartphones e da superficialidade das redes virtualmente sociais; de um tempo em que as crianças brincavam na rua e, às seis, eram chamadas por suas mães para irem para casa tomar banho e jantar.
Depois de descer do carro, até cogito bater na porta da casa em que eu morava para avivar com mais força aquele misto de nostalgia e saudade que me persegue desde as primeiras horas do dia, mas um toquinho de giz, que encontro embaixo de uns desenhos tortos rabiscados no asfalto, chama a minha atenção para a rua.
Sem pensar muito e sem entender o
motivo, eu começo a desenhar uma amarelinha na larga calçada em frente à minha
antiga casa. Porém, antes de chegar ao “Céu”, o toco de giz termina. Ainda bem
que logo encontro um pedaço de tijolo na casa em frente, que está em reforma.
Termino o semicírculo que delimita o céu da brincadeira e nele desenho um
arco-íris e o Sol que estava tão ausente daquele dia cinzento.
Coisa boa da amarelinha é que dá
pra brincar sozinha. Me esforçando para manter meu corpo fora de forma
equilibrado enquanto vou pulando sem tentar pisar nas linhas, reencontro,
naquela brincadeira, a leveza que precisava para conseguir lidar com a saudade.
Depois de alguns minutos, vejo
uma garotinha de menos de cinco anos saindo da porta da casa da minha mãe, com
a cautela de um bicho que se aproxima de um maior por não resistir à
curiosidade. Pergunto se ela quer aprender e ela faz que sim com a cabeça.
Quando a vejo saltitando, na
tentativa de alcançar o céu, me emociono profundamente por me lembrar do exato
dia em que minha mãe me ensinou a brincar de amarelinha e em que brincou comigo.
Aquele dia ficou guardado em mim não tanto por ter gostado da brincadeira, mas
por ter descoberto que era a brincadeira favorita da infância dela e porque foi
uma das poucas vezes que vi um sorriso tão imenso em seu rosto e uma serenidade
tão grande em seu coração.
Acho que foi aquela mesma luz que
radiou o meu rosto e suavizou o meu semblante.
Queria muito que mamãe pudesse me ver revivendo a mesma experiência com
aquela garotinha.
Quando me despedi, dei-lhe um
forte abraço e um “muito obrigado” que ela deve ter custado a compreender.
Ao chegar em casa, meu marido já tinha
chegado do trabalho.
“Tudo bem?” – ele me perguntou.
Não por saber o quanto aquela data costumava ser difícil para mim, mas por ver
que eu trazia, no lugar da cara inchada e dos olhos vermelhos dos anos
anteriores, um sorriso no canto da boca e um silêncio que devia ser intrigante
para ele.
“Acho que você tá gostando
alguém, hein filha?” – era o que a minha mãe costumava dizer sempre que me via perambulando
pela casa com esses sorrisos e silêncios estranhos. A lembrança aumentou o meu
sorriso e deixou meu marido ainda mais intrigado.
Dou um abraço nele. Muito feliz
por descobrir que nem toda ausência inesquecível precisa ser dolorosa. E por me
dar conta de que a minha mãe ainda é parte do que me faz forte e, por isso, ela
permanecerá para sempre comigo.
(Felipe Rocha, 6 de fevereiro de 2018)
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