Transe
I
Estava contente porque finalmente
encontrara um bom pretexto para falar com a menina mais bonita do colégio.
Soube que ela gostava de rock dos anos 90, mas pouco conhecia dos Beatles.
Aproveitou a “lacuna” para se dispor a gravar para ela uma fita k7 com os
melhores hits da banda inglesa.
Foi até melhor do que esperava. Além
de ter tido uns razoáveis minutos para falar com ela sobre um tema que conhecia
bem e que afastava seu nervosismo, ainda teve a honra de colocar a fita no
walkman dela e de compartilhar do seu fone de ouvido na orelha esquerda.
Ele tinha 16 e ela 14, mas o corpo e a
postura dela faziam ele se sentir um moleque perto dela. Ainda estava pouco acostumado
a ficar na escola em período integral, em razão do aumento da jornada de
trabalho da sua mãe. Mas as aulas de informática, os jogos de vôlei e futebol e
as aulas e inglês e de reforço escolar que tinha nas tardes de segunda à sexta
fluíam com leveza, quando calhava dela fazer a mesma atividade no mesmo
horário.
Enquanto escutavam “In my life”, ele descobriu que ela
também ficava no colégio em período integral por causa do trabalho da mãe. A
dela era professora de lá e, quando a direção acolheu o pedido de muitos pais
de criar o regime integral, ela foi uma das primeiras a aderir.
Tornaram-se amigos os dois. Como costuma acontecer,
passaram a compartilhar hábitos.
II
Por volta das 16h00 ela ia com ele
para a área do maternal e lá ficavam olhando os bebezinhos fofos com seus calções
e suas fardas sem mangas. Ela dizia para ele que costumava fazer isso porque
sentia paz ao ver crianças pequenas. Não havia como discordar.
Ele a fez aprender a graça que havia
em jogar vídeo-game. Gostava principalmente dos rpgs de super-nintendo, como
Chrono Trigger e Star Ocean, e logo ela
também passou a perder algumas horas em frente à TV com os jogos que ele lhe
emprestava. Certo dia eles até jogaram Final fight 2 até zerar e, quando acabou
o jogo, ele concluiu que ela seria a sua garota perfeita. Uma pena que um final
de jogo de vídeo-game não inspira em nada a espontaneidade de um beijo ou
início de um romance.
O que
temia é que ela o visse apenas como amigo. Considerava um bom sinal o fato dela
nunca ter mencionado nada sobre namorado, sobre garotos que considerava
interessante ou sobre aqueles que também se encantavam por ela. Mas ainda era
jovem demais e inexperiente demais para passar dessa constatação à conclusão de
que ela também poderia vê-lo com os olhos de quem se apaixona.
Gostavam particularmente das tardes
de sexta-feira. A escola tinha organizado um sistema de oficinas temáticas que
os alunos escolhiam participar mensalmente, de acordo com seus próprios
interesses e afinidades. Havia oficina de dança, de teatro, de culinária, de
literatura, de pintura e até de artesanato com argila. Combinavam de fazer
todas elas juntos. Até a de teatro e a de dança ele topou, a convite dela,
embora se considerasse muito tímido e desengonçado para se expressar
corporalmente.
Na verdade, embora tivesse vergonha
em admitir, a verdade é que viu nessas oficinas uma possível oportunidade (para
não dizer pretexto) de ter um contato físico que o deixasse mais próximo de
concretizar o intento de conquistá-la.
De fato aconteceu.
III
Por mais surpreendente que lhes
parecesse, tinham aprendido uns bons passos de bolero em duas semanas de
oficina de dança. O garoto enrubesceu quando o busto dela encostou nele e seus
hormônios efervescentes de adolescente entraram
em ação. Torceu para ela não ter percebido.
Ele decidiu que até o fim do ano iria
se declarar. Já havia ocasiões em que estavam conversando banalidades e de
repente suas mãos esfriavam porque o calendário colado na geladeira já estava
bem fino e ele não encontrava a ocasião apropriada. Mas nem foi preciso.
Numa dessas tardes em que já não
chovia há meses e as nuvens se rareavam, ela o convidou para ir para a sala cuja
janela dava para o pátio do colégio e que ficava no andar mais alto de lá.
Queria ver o pôr-do-Sol. No auge, colocou uma fita de MPB no walkman, deu um dos
lados do fone para ele e apertou o play.
A presença da sua pessoa favorita, o
céu rosado, o Sol dourado... Esse maravilhoso conjunto o fez suspirar. E quando
um jovem Milton Nascimento cantou “e se
eu cantar não chore não, é só poesia...”, ele foi pego de surpresa e sua
garganta travou. Sem saber bem o porquê, lágrimas escorreram do seu rosto. Ela entrelaçou
os dedos da mão direita nos dele e, com a outra, afastou as lágrimas de suas
bochechas, enquanto as suas revelavam aquelas covinhas que se formavam com o
sorriso.
Os olhos tão negros quanto seus
cabelos lisos, brilhavam com o Sol de lá fora. E, tão simples quanto um
vagaroso caminhar, ela pôs a mão esquerda na nuca dele e o beijou na boca. A
euforia foi tanta que pouco importava ter sido ela a tomar a iniciativa.
As mãos se soltaram e verteram-se em
abraço, com direito a sutis toques em regiões erógenas.
Quando saiu do transe, ele pensou –
pela primeira vez, desde que se tornara adolescente -: a vida não precisa ser
difícil. É possível ser feliz.
(Felipe Rocha, 8 de junho de 2018)
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