Translúcidos silêncios


I
É uma das coisas boas de trabalhar com produção de resultado: fazer a própria jornada e poder se permitir “sextar” logo ao meio dia do quinto dia útil. Já faz uns anos que deixei de ser daqueles jornalistas que correm a cidade atrás de notícias e passei a ocupar o lugar privilegiado de quem só precisa apresentar uma boa reportagem a cada semana, como a que eu havia acabado de entregar para o editor-chefe.
Foi essa liberdade que me permitiu aceitar o convite de uns colegas para uma comemoração da promoção que eles tinham conquistado no nosso jornal, logo no início do ano, pelo bom trabalho que fizeram no anterior.
 Tive a impressão de ter sido convidado mais na qualidade de um veterano do setor no qual eles tinham recentemente ingressado, mas, ainda assim, topei, por essa afinidade que tenho com pessoas mais jovens e inteligentes que eu.
Admirei-me do fato do almoço ter sido marcado no apartamento da Athena, uma das promovidas e entusiastas daquela celebração. No meu tempo, eram raros os eventos que ocorriam em ambiente tão pessoal, mas gostei bastante da ideia, sobretudo quando entrei no recinto.
Era um apartamento com terraço, grande demais, se comparado aos de quem tinha o nosso poder aquisitivo, mas cujo metro quadrado não era tão caro por ser de um prédio antigo.
Fui o primeiro a chegar. Contive o meu TOC com pontualidade e toquei a campainha precisamente 30 minutos depois do meio dia. Percebi que, ainda assim, havia chegado cedo, por ter demorado pelo menos um minuto entre o “já vai” da anfitriã, o barulho de quem está terminando de se arrumar às pressas e – finalmente – o destrancamento da porta.
Ela me recebeu com um entusiasmado “Seja bem-vindo Fernando!”, seguido de um ligeiro abraço que me fez sentir o saboroso aroma do seu perfume. Pus o vinho na geladeira da cozinha americana, em cumprimento à orientação que me havia sido repassada, e, depois de deixar Athena à vontade para concluir os últimos preparativos, segui meu hábito involuntário, que se repete sempre que ingresso na residência de alguém: o de observar os livros que a pessoa tem em seus armários e os itens de arte que decoram o local.

II

Além de livros biográficos, tão comuns nas estantes dos jornalistas, notei que Athena tinha um bom gosto para o romance e para a poesia, passeando os olhos pelas capas de Manoel de Barros, Thiago de Mello, Leminski, Mia Couto, Valter Hugo Mãe, Kundera, Jorge Amado, dentre tantos outros.
Também me deslumbrei com as fotografias urbanas e os quadros bastante coloridos que enfeitavam as paredes, sem aquela pompa de decoração das madames e sem o exagero de quem quer ter um museu particular em casa.
A campainha tocou novamente quando meu olhar se deteve no piano encostado na parede do fundo da sala. Apesar de não ser de cauda, carregava uma imponência que, penso eu, deriva da própria mística inerente ao instrumento. Antes de Marina e Gustavo me cutucarem o ombro para me cumprimentar, minha memória retornou à minha infância, na casa da vó materna, ouvindo o meu avô tocar com uma seriedade que não combinava bem com uma tarde de domingo e com a beleza das músicas que ele tocava.
Retornando ao agora, concluí: eu precisava pedir para Athena tocar qualquer coisa para nós. Não era grande a intimidade, mas quem nos abre a porta do seu lar deve estar preparado para algumas intrusões aleatórias.

III

Concluindo a tour particular que me permiti fazer no ambiente, dei atenção aos porta-retratos nas prateleiras da sala, que, ou traziam fotos com a família ou de viagens para lugares deslumbrantes. Foi quando me dei conta do quão pouco eu havia conversado com a Athena, até então. A constatação foi estranha porque, do tanto que já havia lido do que ela escrevia em nosso jornal, a sensação que eu tinha era a de que havia algum grau de intimidade entre nós.
Bobagem, provavelmente. A verdade é que não posso esquecer que, para quem vive daquilo que escreve, mesmo os silêncios mais tímidos nunca são opacos. As palavras impressas ou postadas nos ambientes virtuais sempre carregam um pouco de nós que, ao leitor atento e frequente, não passa despercebido e faz surgir essa estranha sensação de intimidade.
Chegaram, por fim, Glória e Manoel e fomos todos ajudar Athena a colocar na mesa do terraço os jogos americanos, copos, taças, pratos, talheres e, por fim, as panelas com o delicioso camarão imperial cujo cheiro já me havia feito salivar.
 Ela trouxe o vinho branco que eu havia trazido, já sem a rolha, e, após servir os quatro que pretendiam bebê-lo – eu, ela, Marina e Gustavo -, brindamos ao sucesso da nossa equipe e à beleza dos bons encontros que a vida proporciona.
Então, teve início uma das mais aprazíveis tardes dos últimos anos. 

IV

Não bastassem as valorosas companhias e o prato apetitoso que degustávamos, aquele happy hour prematuro também se tornou tão valioso em minha memória porque o sommelier que me propôs levar aquele vinho acertara em cheio, porque o céu era azul e as nuvens esparsas, mas o Sol não queimava e a brisa era fresca e porque havia flores de variados tons em torno da varanda.
Quando o grupo tocou em um assunto que mais tinha a ver com eles e que me era pouco afim, me permiti acender um cigarro, fechar os olhos e deixar a melodia do sax de John Coltrane – mais um acerto de Athena – me conduzir pela degustação daquele momento presente que, de tão intenso, apesar de singelo, conseguiu me manter apenas ali, sem devanear por alguma memória do passado ou por algum plano para o futuro.
Chegou a segunda garrafa. Um outro vinho branco. Não sei se já era o meu paladar que estava amaciado, mas me pareceu ainda melhor que o primeiro. Gostei de ver que Athena e Gustavo continuavam enchendo suas taças com o mesmo entusiasmo que eu, enquanto Glória se mantinha na água sem gás e o Manoel na coca zero.
Fiquei vaidoso quando Athena me pediu para contar ao grupo como tinha ido parar no jornal. Não tanto pela história em si (eu era amigo e colega de faculdade do editor-chefe e, depois do meu divórcio, nos tornamos mais amigos e ele me convidou para trabalhar em seu jornal), mas por notar a avidez no olhar daquele grupo de jovens jornalistas que eram pelo menos dez anos mais novos que eu.
Eu notara um interesse genuíno do grupo em me conhecer e que havia uma certa deferência pela experiência que eu adquirira ao longo dos anos, que contrastava bastante com a visão dos colegas do meu antigo trabalho, que, do alto de sua imaturidade, viam os jornalistas mais velhos como estorvos ineptos e anacrônicos; incapazes de se adaptar à nova dinâmica do mercado jornalístico oriunda do advento da internet.
Athena, que mais tarde me dissera que não achara justo eu atribuir o meu ingresso apenas à amizade com o chefe, disse ao grupo, tocando no meu antebraço, que acompanhava minhas reportagens desde que eu trabalhava na concorrência e que sentia orgulho de ter se tornado minha colega de setor. Respondi a gentileza pousando minha mão na sua e dizendo que eu também era um leitor assíduo do trabalho dela e que muito me admirava a sua capacidade de abordar temas tão sérios e difíceis com pitadas de humor irônico e com referências literárias que eu teria muita dificuldade de articular tão bem em um texto jornalístico.
Brindamos todos a esse encontro de admiradores mútuos e, para a minha surpresa, a mão direita de Athena permaneceu sobre o meu antebraço esquerdo mesmo quando hasteamos as taças para o brinde.

V

Já estávamos na terceira (ou seria a quarta?) garrafa. Fazia quase um ano que eu não me sentia inebriado com vinho. A sensação era boa porque não havia exagero na embriaguez. Estava no ponto exato que afrouxa minha timidez, me aguça os sentidos e os ânimos – diria até que o amor pela vida -, sem chegar ao extremo de perder o juízo, a memória ou a compostura.
Quando começava a calcular o quanto precisaria reduzir o ritmo do esvaziamento da taça para não ter que simplesmente parar de beber, Athena nos ofereceu de sobremesa um bolo de chocolate acompanhado de sorvete de creme que deixaria qualquer petit gateau com inveja. Depois do doce e da água para aliviar a sede do açúcar, ela perguntou quem gostaria de um café. Todos, com exceção de Glória, aceitaram. Antes da anfitriã levantar e voltar para a cozinha, eu toquei em seu ombro e falei: Deixa que eu faço. Modéstia à parte, o café que eu faço costuma ser elogiado.
Foi a vez dela pôr a mão sobre a minha e, aceitando minha sugestão, ela sorriu e disse que ia me acompanhar até a cozinha para me mostrar onde estava o café e a cafeteira.
Enquanto ela pegava os instrumentos necessários para o preparo, notei que Athena tinha uns 30 centímetros a menos que eu. Não era de espantar, já que eu é que sou bem maior que a média dos brasileiros. Só mais tarde é que percebi que foi o anseio por um beijo da sua boca que me fez desejar que o seu rosto não ficasse tão abaixo do meu.
Aguardando a água ferver, pude me sentar em uma banqueta que ficava no lado do batente oposto ao do fogão. Agora assim estamos da mesma altura! Eu disse sorrindo. Fica mais fácil pra gente conversar. Ela sorriu com os lábios cerrados e respondeu: Conversar... Sei. E inclinando o rosto para a frente, como uma vizinha fofoqueira que se aproxima da janela, ela puxou meu rosto pegando em minha nuca e me deu um beijo na boca.
Só fomos interrompidos pelo barulho da água borbulhante, que fervia à altura do nosso desejo.

VI

Depois do café, Glória se levantou para ir embora, sob o argumento ou pretexto de que ainda tinha que trabalhar naquele dia. Manoel também se despediu, dizendo que ia levar o filho para a natação.
Eu, Athena, Marina e Gustavo partimos para o vinho tinto que a convidada havia trazido. Gustavo comentou qualquer coisa sobre o tipo de uva e a região de onde o vinho provinha, mas eu não recordo e nem me importo em saber; o importante é que o tinto caiu muito bem depois do doce, do café, de um engov e uns copos d’água.
Foi minha vez de inserir um assunto na pauta e questionei Athena sobre o piano. Ela nos disse que o tinha desde a adolescência e que, embora já estivesse afastada das aulas há mais de uma década, ainda tocava de vez em quando para espairecer ou quando alguma canção do rádio ou de um filme a inspirava.
Eu, então, pedi que ela tocasse alguma coisa para nós, no que fui acompanhado pelos insistentes pedidos dos demais colegas. Ela aceitou e, para minha surpresa, começou a tocar uma sonata de Chopin de cor, sem precisar consultar qualquer partitura. Foi incrível. Achava impressionante alguém conseguir extrair melodias tão bonitas a partir de um objeto feito de madeira, cordas, martelos e sabe-se lá mais o que, que nem elétrico era.
Acho que foi tamanho o grau de encantamento que aquele pequeno sarau vespertino me causara, que, após eu puxar a minha cadeira para a parte lateral do piano, de modo a poder apreciar, também visualmente, o singelo espetáculo, notei que Athena, em diversos momentos e sem parar de tocar, me olhava nos olhos e sorria.
Ao final, após efusivos abraços da seleta plateia, Athena nos revelou que era estranho para ela tocar para pessoas que apreciavam tanto ela tocando porque havia se acostumado com seus pais e irmãos fechando as portas dos quartos quando ela treinava para as aulas e apresentações de final de ano, ou pedindo para ela tocar com o pedal que abafava o som acionado, quando ela queria tocar à noite.
Que desperdício! Pensei. Talvez seja verdade o que dizem sobre se tornar banal tudo que passamos a possuir que um dia nos encantava. Talvez. Quanto a mim, o que eu queria era aproveitar o máximo possível a oportunidade de me deleitar com aquela arte tão contagiante. Retornei do meu devaneio quando notei que Marina e Gustavo se levantaram para se despedir. Talvez por notarem o clima que havia entre eu e Athena e sentirem que estavam “atrapalhando”, ou simplesmente por alguma culpa típica dos workaholics, de que não se deve desperdiçar um turno inteiro do horário de expediente de um dia útil em uma confraternização que nem era de dezembro.
Por impulso, me levantei também. Mas logo sentei de novo quando senti Athena pegar em minha mão e me dizer: Fica.

VII

Depois que ficamos a sós, Athena me ofereceu uma dose de contreau de saideira. Fizemos o último brinde do dia e eu pedi que ela tocasse alguma música que eu pudesse cantar. Embora não soubesse tocar nenhum instrumento, me orgulhava de saber cantar sem desafinar e de ter uma voz grave cujo timbre costumava ser elogiado nas rodas de violão dos tempos da faculdade.
Ela gostou do pedido e me perguntou o que eu gostava de cantar. Respondi que poderia ser qualquer coisa que ficasse entre a MPB, o samba, a bossa nova e o jazz.
Pelas primeiras notas, logo reconheci a canção escolhida. I fall in love to easily, Chet Baker. Foi um bonito dueto. Descobri que, além de tocar, ela cantava muito bem e o tom deu certo para ambos porque a distância de uma oitava era bem percorrido por nossas vozes.
Só deu para cantarmos uma música, entretanto. Ao final desta, foi a minha vez de puxá-la para um beijo. Enquanto ela desabotoava minha camisa, caminhávamos trôpegos para o quarto e a cama dela. A dificuldade que ela teve de retirar meu cinto e desabotoar minha calça foi o oposto da que eu tive para desnudá-la. Bastou descer o zíper do seu vestido e desafivelar o seu soutien. Só então é que reparei bem em como também o seu corpo era lindo, não só o sorriso e o rosto que era iluminado por ele.
Transamos com um belíssimo céu laranja e cor de rosa ao fundo, depois de nossas mãos e bocas e sexos se encontrarem e explorarem todas as nossas zonas erógenas, até o derradeiro momento do gozo. Deitamos, com ela recostada em meu peito enquanto víamos o Sol se despedir daquela tarde tão especial.
Depois, nossos olhos se fitaram e nossos silêncios se reencontraram. Com os olhos postos no olhar de Athena, percebi que não são apenas os silêncios dos escritores que são translúcidos. Também o são os dos amantes cujos olhares se encontram.
Durante a degustação daquele momento presente que, de tão intenso, apesar de singelo, conseguiu me manter apenas ali, sem devanear por alguma memória do passado ou por algum plano para o futuro, percebi que o olhar denuncia o amor, desde o momento em que ele nasce.

(Felipe Rocha, 29 de março de 2020)

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