A vida para Francisco
Conheci pessoa muito interessante
quando tratei-me da leucemia. Uma criança de nome Francisco, de apenas onze
anos, que, assim como eu, tentava se curar daquela maldita doença. Deveria
estar na ala da oncologia pediátrica, mas, segundo me explicou, por se quase
adolescente e por seu pai ser médico dali do hospital, ambos preferiam que ele
recebesse a quimioterapia ali junto aos adultos, para ficar mais perto de onde
o pai trabalhava.
Eu, de primeira viagem, me
impressionei tanto com o carinho das enfermeiras e médicas no tratamento que
dedicavam ao garoto – como se se tratasse de um sobrinho ou algum outro
familiar mais novo -, quanto com a serenidade de Francisco, que, apesar do cabelo
já ralo do tratamento, recebia a medicação sem tirar os olhos da janela de onde
se podia ver o bonito jardim do hospital.
Pensei em puxar assunto, mas,
enquanto pensava em se e como deveria fazê-lo, foi ele quem me interrogou:
Sabia que eu não tenho medo de morrer? Era uma pergunta retórica que me deixou,
mais uma vez, surpreso por se tratar de um assunto grave trazido com tanta
naturalidade por um menino de apenas onze anos.
Ele continuou: Tenho não. A vida
já me deu muito do meu querer. Vejo aqui esse gramado verde da janela e me
lembro das férias no sítio do meu pai, em que eu saía correndo com meus amigos
do colégio, fosse pra catar fruta no pé, pra banhar no açude ou pra jogar bola.
Até beijar na boca eu já beijei. A Amanda, que é a mais bonita e cdf da turma.
As quadrilhas de São João e as festas de natal, com filmes, chocolate, o piano
da minha mãe e os presentes que eu ansiava em abrir também entrariam no meu
álbum de memórias.
Só o que eu consegui responder
foi: que bom que tu já és tão grato pela vida que tem, mas tenho certeza que tu
ainda tens longos anos pela frente. Vais sair dessa com certeza!
Ele suspirou e respondeu: É. Talvez.
Mas eu prefiro não criar expectativa. Já faz tanto tempo que eu não faço o que
fazia antes que eu prefiro me confortar com as memórias do que já tive a ficar esperando por mais. Eu nem me preocupo em
saber se vou virar anjo, fantasma ou espírito depois que morrer. A ideia de
descansar pra sempre não me assusta nem desagrada. Deus já fez muito me dando
esses onze anos de tantas felicidades e tão pouco sofrimento.
Fiquei pensativo com tudo aquilo
e, quando fui responder, vi que o garoto adormecera. Tinha acabado a minha
primeira sessão da quimio e voltei pra casa com vontade de escrever sobre o
assunto pra nunca me esquecer daquele pequeno grande encontro.
Com o passar das semanas, desenvolvi
pelo garoto o mesmo carinho que o corpo médico do hospital havia desenvolvido e
nossas conversas se tornaram mais ricas. Até que chegou o momento da despedida.
Com o fim do tratamento, eu entrei em remissão e, graças a Deus, não voltei a
ter leucemia, pelo menos ainda não.
Quanto ao Francisco, eu soube,
meses depois, que ele também estava curado. Apesar da sua admirável resignação
com a possibilidade do pior acontecer, ele foi agraciado com a oportunidade de
levar à frente sua ainda curta (apesar de intensa) vida. Emocionado com a
notícia, recordei do meu trecho preferido do Livro dos Abraços do Eduardo
Galeano:
“Não tenho
nenhum deus. Se tivesse, pediria a ele que não me deixe chegar à morte: ainda
não. Falta muito o que andar. Existem luas para as quais ainda não lati e sóis
nos quais ainda não me incendiei. Ainda não mergulhei em todos os mares deste
mundo, que dizem que são sete, nem em todos os rios do Paraíso, que dizem que
são quatro.
Em
Montevidéu, existe um menino que explica:
— Eu não
quero morrer nunca, porque quero brincar sempre.”
Vai brincar, Francisco! Vai pro
mundo de peito aberto que ele é todo teu!
Aliás: Vamos!
(Felipe Rocha, 18 de julho de 2020)
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