Um dos melhores dias dos pais de todos

                   I

Era o segundo sábado de agosto quando fui dormir. No dia seguinte, eu ia almoçar na casa dos meus pais, como sempre fazia no dia dos pais. Mas a manhã seguinte foi bem diferente da que eu havia planejado.

Acordei no quarto que dividia com meus irmãos na casa de dois andares onde passei minha infância. Reparei em meu próprio corpo e notei que tinha voltado a ser criança, assim como meus irmãos, que dormiam nas camas ao lado da minha. Minha reação instintiva foi procurar meu celular para ver a data. Mas, quando me lembrei que ele ainda não existia quando eu era criança, procurei saber em que dia estava através de um relógio digital de pulso que eu tinha na época e que dizia que estávamos em 8 de agosto de 1993.

A princípio, um leve desespero me fez sentir um frio na barriga. No entanto, seja por já ter tido sonhos que se confundiam com a realidade ou por ter assistido muitos filmes de ficção científica, o temor logo cedeu lugar à vontade de aproveitar bastante aquela experiência.

Era comum, no dia dos pais, eu e meus irmãos escrevermos para nosso pai cartões que entregávamos com o presente que mamãe comprava. Para não correr o risco assustá-lo com um cartão escrito em linguagem não condizente com o vocabulário de uma criança de 9 anos, preferi escrever uma mensagem simples, que trazia aquilo que eu gostaria que um filho me dissesse, se eu fosse pai: “Pai, eu tenho muito orgulho de ser seu filho e gosto muito da sua companhia e do quanto posso aprender contigo. Te amo!”.

A força do abraço que recebi em gratidão ao que escrevera me fez perceber que acertei ao supor que ele se emocionaria com aquela singela mensagem.

A programação do domingo não seria muito diferente da dos demais: nós íamos almoçar na casa da minha avó materna. Com uma diferença bastante significativa: àquela época, a casa meia morada da Rua da Alegria ainda era dos “meus avós”, já que meu avô materno ainda estava vivo, em 1993. E, o que é melhor, ainda estava lúcido e bem de saúde, tirando a diabetes que o acompanhou até o fim da vida.

Foi a minha vez de ficar emocionado. Acredito que já tinham se passado mais de quinze anos da última vez que tivera a oportunidade de conversar com o meu avô. Por tudo isso, foi muito difícil conter as lágrimas quando, ao chegarmos em sua casa, ouvi ele dizendo: “Cadê o abraço do vovô?”.

II

Ali eu percebi que tinha sido eu quem ganhara o melhor presente naquele dia dos pais tão especial e mágico. Durante o almoço, embora o comum fosse os adultos almoçarem na mesa da cozinha e as crianças com os pratos apoiados em almofadas no sofá da sala, eu dei um jeitinho de me acomodar ali pela cozinha porque queria aproveitar o máximo possível a oportunidade de matar a saudade do vovô Antônio.

Como eu sabia bem que ele gostava de falar do seu passado, pedi que me dissesse alguma coisa sobre a sua relação com meu bisavô. Dentre outras coisas, ele disse que havia duas coisas que dizia ao seu pai: que, se fizesse uma prova e tirasse zero, ele nunca mais faria uma prova e que, se ele fosse a uma festa e não dançasse, ele nunca mais iria a uma festa.

Todos sorriram, por acharem as afirmações bem a cara dele, sobretudo a última. Eu também lhe perguntei se ele se lembrava de ter me emprestado, há pouco tempo atrás, uma medalha que ganhou em seu trabalho na prevenção de acidentes de trabalho. E aproveitei a oportunidade para lhe agradecer – porque não sei se o fiz na época – e para dizer que sentia orgulho dele ter ganhado uma medalha por motivo tão nobre.

Meus irmãos foram os que mais perceberam que eu estava bastante diferente do habitual, porque, quando criança, além de ser bastante tímido, eu ia almoçar na casa dos meus avós com muita vontade de chegar logo em casa para jogar os jogos de vídeo-game que costumávamos alugar nos fins de semana.

É claro que eles não acreditariam se lhes dissesse a verdade. Por isso, apenas mencionei que tinha tido um sonho muito estranho com vovô e que, por isso, surgira essa vontade de aproveitar melhor sua companhia.

Antes dos adultos concluírem o almoço e irem repousar na tradicional siesta dos domingos, eu propus que vovô nos levasse à tarde para passear na praça Gonçalves Dias e que, em seguida, fossemos com meu pai para a Maria Aragão andar de bicicleta.

Vovô gostou do convite, mas disse que precisava descansar antes. E papai perguntou se não seria melhor deixarmos para um outro dia, já que nem tínhamos levado as bicicletas para a casa dos meus avós. Eu respondi que não porque seria muito legal nós celebrarmos o dia dos pais com uma atividade entre pai e filhos que não fosse apenas nos reunir para comer. Disse ainda que seria legal levar a máquina fotográfica para registrarmos essa comemoração do dia dos pais. Papai sorriu concordando e disse que, depois do descanso,  ele ia buscar as bicicletas em casa e encontraria conosco lá na Gonçalves Dias, para descermos juntos para a Maria Aragão.

III

Por volta das três da tarde, eles acordaram e foram tomar o café que vovó tinha acabado de passar, com minha mãe e meus tios que ainda moravam lá. O mais velho, que tinha se tornado pai há pouco tempo, já tinha ido embora, pois ainda ia passar na casa do sogro. Aproveitei o espaço na mesa e disse a vovó que também queria café. Ela me serviu e, no enquanto do lanche, perguntei ao meu avô sobre o pedido de namoro que ele fez à minha avó e sobre como se conheceram. O seu sorriso se abriu narrando esses episódios.

Às quatro, chegamos na praça Gonçalves Dias. Vovô, que era bem guloso, comprou um pastel de carne para si (que não tive coragem de repreender) e para os netos comprou pipoca e refrigerante. Comemos em um banquinho próximo à Igreja dos Remédios. Ali o vovô Antônio disse que, naquela Igreja, ele tinha sido batizado, feito primeira comunhão, tinha se casado e, futuramente, ali seria sua missa de sétimo dia. Senti um nó na garganta quando ele disse isso, por me lembrar bem do quão dolorosa fora a partida dele, para todos nós que aqui ficamos.

Ainda bem que o foco mudou, com meus irmãos dizendo que iam brincar com uns meninos que estavam com uma bola de vôlei. Eu dispensei o convite dizendo que minha perna estava doendo. “Deve ser dor de crescimento”, disse o vovô Antônio. 

Quando ficamos a sós, eu perguntei a ele se tinha alguma coisa em sua vida da qual ele se arrependia e se tinha alguma coisa que ele ainda queria fazer. Ele me olhou com um ar de surpresa, mas respondeu sem dificuldade: “Tem não, meu filho. Eu já trabalhei muito, já criei meus filhos... Agora tudo o que eu quero é isso aqui. Curtir meus netinhos. Curtir minha família, jogar damas com os amigos, ir pra missa às seis horas, buscar vocês no inglês...”.

Ele suspirou e então continuou: “Tem gente que viaja muito por aí, quer conhecer o mundo... Eu não. Sabe, meu filho, Deus é tão maravilhoso, que ele fez um mundo bem grande, cheio de gente. Mas cada um de nós consegue ser feliz num pedaço bem pequeno do mundo e só com um pouquinho de gente. Esse povo que faz tanta questão de viajar por aí parece que faz isso é porque não encontrou a felicidade dentro de casa.”.

Quando me lembrei que vovô costumava olhar para os filhos nos retratos que tirava com eles, em vez de mirar o olhar frio e impessoal da câmera que o fotografava, eu não consegui (e nem quis) conter as lágrimas. Enxuguei-as discretamente e disse a ele: “O senhor é muito sábio, vovô. Tenho orgulho de ser seu neto.”. Ele sorriu e logo apontou: “Olha, o teu pai chegou com as bicicletas de vocês!”.

IV

Ele também tinha levado a máquina fotográfica, como eu havia pedido. Depois de tirar uma foto com os três netos, meu avô voltou para casa e eu, meu pai e meus irmãos fomos para a praça Maria Aragão.

Minha mãe também tinha ido, apesar de não andar de bicicleta. Ela queria tirar as nossas fotos com papai, como eu havia sugerido. Como, na época, nós só tínhamos duas bicicletas em casa e, dentre os irmãos, eu era quem fazia menos questão de pilotar uma, combinamos que os meus irmãos iam se revezar na bicicleta mais nova e eu andaria na carona da outra, com meu pai pedalando.

Papai começou a pedalar e me perguntou se eu não queria revezar com meus irmãos por ainda ter medo de cair andando sozinho. Eu falei que não, que era só porque eu não fazia questão mesmo. E que, na verdade, a impressão que eu tinha é que corria mais risco de eu cair andando na carona dele do que eu mesmo pedalando.

Ele sorriu e respondeu: “É engraçado isso... Eu lembro quando tu era pequenininho, que uma vez te levei no mar e te joguei pra cima. Quando fui te apanhar, tu quase escorregou do meu braço e caiu. Mas eu consegui te pegar e tu sorriu sem ter a menor noção do risco de ter caído... É engraçado como os filhos confiam na gente completamente quando são pequenos”.

Quando ele disse isso, eu resolvi fechar os olhos ali na carona, só me preocupar em sentir o vento no rosto e confiar que o meu pai conseguiria conduzir nós dois na bicicleta sem nos derrubar. Eu consegui. Quando voltei a abrir os olhos, eu respondi a ele: “Eu ainda confio completamente no senhor, papai”, no que ele respondeu: “Que bom, meu filho... que bom”.

Íamos terminando a volta e mamãe pediu para ele reduzir a velocidade para que ela tirasse a foto dele pedalando, comigo na carona, e meu irmão mais velho na bicicleta ao lado. Depois daquela primeira volta, eu propus que meu pai levasse a minha mãe na carona, enquanto meu irmão mais novo andava na outra bicicleta. Ela recusou a ideia, dizendo que não achava seguro e que preferia ficar ali tirando as fotos.

Então, o caçula disse que era ele quem ia andar de carona com papai e eu pedi ao mais velho para que eu pilotasse a outra só daquela vez e que depois eu não participaria mais do rodízio.

V

 A minha intenção, na verdade, era a de observar de perto a satisfação que meu pai sentia de fazer aquele passeio com seu filho mais novo, levando ele na carona da bicicleta.

Durante muito tempo da minha infância, eu, que observava o quanto meus pais trabalhavam dentro e fora de casa, tinha a tola ideia de que o tempo que eles dedicavam a mim era um desperdício e uma futilidade que eles atendiam apenas para me satisfazerem, não porque efetivamente gostavam. Não era por isso, entretanto, que acompanhei de perto a bicicleta que meu pai pedalava ao lado. Há muito eu já tinha aprendido que esses momentos com os filhos eram algumas das memórias que meus pais guardavam com mais carinho no coração.

O que eu queria – e consegui com êxito – era simplesmente ver os sorrisos e o brilho nos olhos do meu pai e meu irmão enquanto o momento acontecia. Perceber a genuína alegria em quem amamos é das coisas mais gratificantes que existem.

Aquele momento também foi simbólico para mim porque me ver andando de bicicleta sozinho (o que aprendi com meu pai, naquele mesmo lugar), enquanto papai pedalava em trajeto paralelo, carregando seu filho caçula, foi a imagem perfeita de alguém que tenta aprender com seu pai a lidar com as ternuras e desafios que a paternidade proporciona, para se preparar para quando for a sua vez de “conduzir” seu filho.  

 Quando o Sol estava se pondo, pedimos a uma outra pessoa que ali estava que tirasse uma foto em que aparecesse nós cinco, as bicicletas e o Sol ao fundo. Depois disso, entramos no carro para ir para casa.

No caminho, o cansaço das pedaladas e o ar condicionado do carro me fizeram encostar a cabeça no vidro da janela do carro e adormecer.

VI

Quando acordei, vi que tinha retornado ao tempo presente. Já adulto, com trinta e tantos anos. É claro que só poderia ter sido um sonho!

Não fiquei triste porque, na verdade, para mim, era de pouca relevância o episódio ter sido sonho ou realidade. As palavras que meu avô me dissera refletiam bastante o homem que ele era e que eu continuo amando mesmo que hoje ele habite outro plano. Já os momentos que passei andando de bicicleta com meu pai, felizmente se repetiram outras vezes durante a minha infância, assim como também têm se repetido as oportunidades em que vejo a alegria no sorriso e o brilho nos olhos do meu velho, quando está comigo e com o restante de nossa família.

Mesmo assim, quando cheguei na casa dos meus pais para o almoço, perguntei para eles se havia algum álbum com fotos dos dias dos pais anteriores. Minha mãe respondeu: “Tem várias fotos espalhadas por vários álbuns. De álbum completo, só tem aquele pequeno, que fizemos quando vocês foram andar de bicicleta na praça.”.

Meu coração pulou e meus olhos marejaram quando vi a página que continha, em cima, a foto do meu avô com seus netos e, embaixo, nós cinco com as bicicletas e o poente ao fundo, e quando observei que o álbum se chamava “Um dos melhores dias dos pais de todos”.

(Felipe Rocha, 9 de agosto de 2020)

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