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Mostrando postagens de agosto, 2021

Pelas persianas

Acho que o melhor da vida é quando acordamos com a impressão de ainda estar  sonhando.  Assim me senti quando despertei entre os lençóis e as pernas da artista que é um ser grande e belo demais para ser limitado por um nome. São difíceis e raros os momentos em que os ponteiros dos relógios se dissolvem e a ideia abstrata de tempo é percebida apenas pelo surgimento da fome e do desejo, após o intervalo ditado pelos momentos de saciedade. Não só o seu corpo curvilíneo, mas também o eco de sua voz e de suas ideias em mim, mesmo em momento de silêncio e repouso, me faziam contemplá-la como quem está diante de um lago de águas cálidas. Que sabe que, caso se atreva a nele entrar, dificilmente voltará a dele emergir. Olhando os raios laranjas e dourados do poente que transpassavam as persianas da janela, sorri sozinho ao perceber que era verdade o que ela dissera sobre ser linda a golden hour em seu apartamento. “Faz um café pra gente”. Ela pediu num tom morno e com um carinho em minh

Pela fresta

Eu tinha bebido tanta cerveja e estava tão apertado que não lembrei de fechar a porta do banheiro masculino antes de usar o mictório. Não seria nada demais se eu não percebesse, enquanto ainda esvaziava a bexiga, que era observado por uma moça do cabelo loiro platinado, batom vermelho, blusa preta, short jeans, meia arrastão e salto alto. Ela esperava o banheiro feminino desocupar fumando um cigarro e me observando pela fresta da porta que eu deixara aberta. Quando virei o pescoço para a esquerda e vi o rosto da moça, ela sorriu sem mostrar os dentes e sem desviar o olhar do meu rosto envergonhado. Como a bexiga ainda não tinha secado por completo, voltei os olhos ao mictório, como se um mero desvio de olhar tivesse o mesmo efeito que fechar a porta. Não teve. Apesar de toda essa cena constrangedora ter durado uma fração de segundos, foi o suficiente para eu reconhecê-la como sendo uma artista plástica local que pintava corpos masculinos e femininos em obras que já tinham sido

A valsa real

Sozinho no coreto da praça, o às apreciava o florido jardim do reino.  Estava tranquilo e sereno, mas mesmo aquela colorida beleza não afastara a seriedade do seu semblante. . Eis que aparece em sua frente o coringa. Mestre das ilusões e dos disfarces.  Sua presença trouxera, ainda, uma festiva canção, embora não se visse banda que a tocasse. O às, ainda sério, disse ao palhaço, eu sei que isto não é real. Que não passa de ilusão! O coringa retrucou: Tolo, é real tudo que a gente quer e que conseguimos acreditar que seja!  Pois, nada há de objetivo e é muito tênue esta fronteira! Um inédito sorriso formou-se no rosto do às, que começou a dançar no mesmo (com)passo que o coringa.  Quem os via de longe estranhou.  O valete o chamou  de ridículo pois não conseguia ouvir a música que ele dançava. A rainha fez troça porque não enxergava o par daquela excêntrica valsa. O rei, que, por ser mais velho, era mais frágil e, porém, mais sábio, logo percebeu o que sucedera:  o coringa fizera um às