Pelas persianas

Acho que o melhor da vida é quando acordamos com a impressão de ainda estar  sonhando.  Assim me senti quando despertei entre os lençóis e as pernas da artista que é um ser grande e belo demais para ser limitado por um nome.

São difíceis e raros os momentos em que os ponteiros dos relógios se dissolvem e a ideia abstrata de tempo é percebida apenas pelo surgimento da fome e do desejo, após o intervalo ditado pelos momentos de saciedade.

Não só o seu corpo curvilíneo, mas também o eco de sua voz e de suas ideias em mim, mesmo em momento de silêncio e repouso, me faziam contemplá-la como quem está diante de um lago de águas cálidas. Que sabe que, caso se atreva a nele entrar, dificilmente voltará a dele emergir.

Olhando os raios laranjas e dourados do poente que transpassavam as persianas da janela, sorri sozinho ao perceber que era verdade o que ela dissera sobre ser linda a golden hour em seu apartamento.

“Faz um café pra gente”. Ela pediu num tom morno e com um carinho em minha barriga que tornaria irrecusável qualquer pedido seu.

  Caminhei nu da cama à cozinha americana, como se estivesse em um ambiente familiar ou em minha própria casa, e, enquanto aguardava o fervilhar da cafeteira, sentei-me à mesa e pus meus óculos para vê-la.

Vi que ela me olhava sorrindo, talvez por achar engraçado um homem nu, vestido apenas com seus óculos, sentado em sua mesa depois de passar o café.

Talvez porque ainda não tinha dado tempo de romper com a imagem idealizada que eu tinha daquela moça, apesar de já ter surgido alguma intimidade nas últimas horas, eu ainda a via como a criança que recebe o brinquedo que sempre quis ganhar e que tem medo de manuseá-lo e escangalhá-lo, por tão importante que ele lhe parece.

Mas eu já não era um menino.

 E, embora sentisse a mesma felicidade clandestina que a personagem de Clarice quando finalmente ganhara o livro - com o peito quente e o coração pensativo -, havia uma tranquilidade remansosa que talvez se devesse ao tamanho do tempo que o olhar dela permanecia me perscrutando.

(Felipe Rocha, 17 de agosto de 2021)

  

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