O tom certo

Não era possível que minha impressão de que havia interesse mútuo estivesse errada, mesmo que as trocas, até então, tivessem sido apenas de olhares não desviados que se demoraram um no outro e de sorrisos sutis.


“De hoje não passa”, decidi convicta. O cenário era um tanto anômalo por ser a despedida do orientador do nosso grupo de pesquisa e uma festa com muitos professores e uns quase dez alunos que foram de gaiatos. 


Mas duas taças de vinho já tinham atiçado o meu desejo e meu rubor na medida certa para uma abordagem mais ostensiva. 


Encontrei minha presa ali onde ele mais gostava de ficar, no meio da roda com um violão na mão. Somente na música parecia que deixava de ser tímido. Talvez por ser quem melhor cantava e tocava ou por ter uma veia artística pulsante demais (que fazia ele questionar o tempo todo se estava no curso certo), era ali que ele se soltava e crescia e conquistava eu e algumas outras moças que, pro meu azar, eram mais atrevidas que eu.


Ainda bem que a minha ofensiva foi bastante precisa quando a oportunidade surgiu. Quando ele fez a pergunta que eu sabia que faria (Qual música vocês querem que eu toque agora?), eu respondi em alto e bom tom: Faz um ré maior pra mim. 


Ele se surpreendeu com o meu pedido, provavelmente por estranhar eu saber o tom mais adequado pra minha voz (e pra dele, na música que eu tinha escolhido) ou a minha iniciativa de cantar.


Pra não me intimidar pelo restante da roda e pra tornar mais eficiente a sedução, pousei fixamente meus olhos claros sobre os dele e comecei: “Você… precisa saber da piscina… da Margarina… da Carolina… da Gasolina…”.


Ele engatou a batida certa, logo que  reconheceu a canção, e ficou ainda mais lindo quando percebeu a mensagem que mandei cantando o verso “Você… precisa saber de mim…” e as covas do seu sorriso se formaram em seu rosto.


Apontou pro seu lado esquerdo com o olhar, pedindo que eu me sentasse ao seu lado. Obedeci. 


Terminou a música e ele disse: canta mais essa comigo. E começou Tigresa em dó menor, como no dueto de Caetano e Ney Matogrosso. Sem receio ou pudor, pus minhas unhas em seus cabelos cacheados em um discreto cafuné. Mas desci as unhas até as suas costas quando ele cantou “As garras da felina me marcaram o coração…”, só pra ver novamente aquelas covas no seu rosto imberbe.


A música acabou e ele finalmente entregou o instrumento para outro violeiro. Finalmente foi meu por inteiro.


Em poucas ou muitas horas fomos pra casa, pra cama, pra dentro de nós. E o dueto continuou a dois, entre suor e lençóis.


E ainda continua, por um tempo que, mesmo que não seja eterno, já é infinito.


(Felipe Rocha, 14 de janeiro de 2022)

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