Um último trago

É madrugada. A festa acabou. O vinho acabou. Faz um vento que periga chover, mas não sigo pra casa.

Sintonizo o rádio do meu carro em um solo de sax de um jazz lento.

Imprudentemente, abaixo o vidro da janela para sentir o vento frio no rosto que é o melhor alento à minha alma boêmia.

Resgato um cantil com Old Parr e um charuto no porta-luvas pra um último trago e vou rumo às luzes urbanas dos cantos da cidade que ainda não adormeceram.

Nem faço questão de companhia de gente, me bastam as canções. 

Por que não me aquieto? Nem sei o exato motivo.

Talvez porque os elementos desta madrugada são poéticos demais pra eu me recolher “tão cedo”.

Talvez seja o meu escapismo pisciano que me faz tender a estender este momento que sinto como a cena de um bom filme noir ou de um musical dos anos trinta, como a trazer algum toque de charme e fantasia a estes olhos, mente e peito tão cansados da aridez desta realidade crua e cruel.

Talvez porque sei que a arte é o melhor remédio para amenizar os sintomas da minha incurável angústia existencial. 

Seja a arte genuína ou essa que invento a partir da perspectiva que dou a fragmentos de vida como este de agora e que carrega um quê de loucura ou excentricidade.

Neste passeio, me sinto parte da cidade e do mundo e da sua grandeza infinita. Proposital e momentaneamente, esqueço os problemas das gentes e da complexidade das relações humanas.

Pra conservar a beleza deste agora tão doce, deixarei pra (a)manhã todos os deveres e me entregarei por inteiro à solitude desta anônima noite.

(Felipe Rocha, 9 de janeiro de 2022)

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