Metalinguagem

 

O que não vivo inspira muito do que desejo.

O que desejo inspira muito do que eu escrevo.

Por isso muito do que eu escrevo é do que não vivo.

Para sentir algum lampejo do que não alcanço, deixo de olhar o mundo real à frente de mim para imergir nas fantasias que minha imaginação cria e colocá-las no papel.

No entanto, por vezes um preciosismo requer um retorno ao real para que as estórias adquiram verossimilhança.

Em raros casos, ao fazer isso, percebo que o almejado está ao alcance do toque. Como se me tornasse o personagem que acabei de criar e apresentasse a sua narrativa não com palavras, mas com movimentos.

Hoje isso aconteceu.

Ao parar na praia para buscar inspiração pra um texto inacabado - sobre um sujeito que decide mergulhar no mar em um pôr-do-Sol de terça-feira, depois de perceber, em um engarrafamento voltando do trabalho, que o mundo ao seu redor paralisara e que apenas o mar mantinha o seu perpétuo movimento -, eu decidi sentir, ainda que brevemente, ainda que parcialmente, o que ele sentiria.

O meu mundo não havia parado. O peso e a velocidade dos ponteiros do relógio não cederam e tampouco os afazeres pendentes com os quais eu precisava lidar.

Mas me permiti uma transgressão.

Aproveitei que estava em traje esportivo e encostei na praia, tomei  uma água de côco rapidamente e, em seguida, tirei o tênis, a camisa, celular, carteira e óculos e desci do carro apenas vestindo uma sunga e uma bermuda e com a chave do carro nas mãos.

Por “sorte”, já fazia tempo que os botões da trava elétrica da minha chave não funcionavam justamente por terem molhado, o que me permitiria entrar no mar com ela sem maiores receios.

O sentimento de que havia qualquer coisa de clandestino naquele gesto só começou a ceder quando pus os pés na areia fofa e morna. Além de me sentir abraçado pela praia, dando um passo após o outro com a chave do carro na mão, me senti senhor da minha vida e dos meus caminhos.

Era eu quem carregava a chave que poderia me levar pelos caminhos que eu escolhesse. Era eu quem escrevia o meu destino e protagonizava a minha história.

O mar, por sua vez, mostrava toda sua majestade. Despido dos óculos escuros e das músicas que costumam estar presentes enquanto eu contemplo o oceano do meu carro, ele me dizia: Cale-se e me ouça. Veja como eu seu sem qualquer filtro e intenção de registro que não seja mnemônico.

Respeitei a ordem.

O primeiro contato com a água me trouxe frio. Olhei pro Sol de brilho intenso e lindo, mas que pouco aquecia, posto que poente, e vi naquele frio a representação do meu superego tentando me provocar medo e culpa, para me dissuadir da ideia de me entregar ao sentimento oceânico que o mar me provocava e me fazer voltar logo para a obediência estrita à rotina ditada pelas minhas neuroses.  

Eu preciso mergulhar para que o frio passe. Em pouco tempo ele passará. Pensei com convicção e certeza.

Olhando o mar que me desafiava, naquele canto de praia em que eu me encontrava sozinho,  me senti seu amigo íntimo, como um Mestre Severino de Josué Montello ou um Santiago de Hemingway.

Estava certo. Pouco tempo depois, o frio passou completamente, ficando apenas o arroubo que tomou conta do meu olhar, apesar de míope, com o vislumbre do poente iluminando as águas, e também o prazer que advinha da sensação de leveza e liberdade que eu sentia ao me permitir boiar sobre o fluxo das águas ou ao brincar de enfrentá-las, nadando – corpo inteiro – em sua direção e tentando cortar suas cristas com a quilha que formava com minhas mãos unidas.

Lembrei da frase de Winnicot que dizia que “É no brincar e somente no brincar que o sujeito pode vir a ser em sua verdadeira essência”.

Fazia tempo que eu não brincava. Fazia tempo que eu não apenas “era”; que eu não saía do jugo dos imperativos que me comandam para me encontrar, sozinho e nu, com o meu desejo.

Brinquei e descansei no mar até atingir o estágio que eu queria: o de sentir vontade de não sair nunca mais dali.

Saí da água mais novo do que quando entrei. Bento e revigorado. Como se Eros tivesse vindo pessoalmente me encantar e encher minha vida de pulsão e vitalidade através daquela água que agora escorria de mim com a mesma beleza das lágrimas que descem dos olhos emocionados.

(Felipe Rocha, 12 de outubro de 2022)

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