Ainda é manhã

Em um dia cinzento e escuro de tão chuvoso (graças a Deus um sábado!), me permiti ficar somente em casa.

Acordei cedo porque já não sei dormir até tarde. Em vez de teimar com o meu alarme interno que sempre me põe de pé às 06:00, e por mais tentador que fosse o calor e o conforto do edredom, dei início ao dia. Em ritmo lento e tranquilo, entretanto.

Café no coador, ovos na frigideira e pão massa grossa na sanduicheira, liguei o rádio na 106,9 para ouvir um “FMPB” carregado de músicas suaves e nostálgicas, que minha mãe escutava no caminho pro colégio. 

Depois de me aquecer por dentro com essa primeira refeição, um mamão com chia encerrou o meu desjejum. 

Já faz tempo que faço do banho um momento de higienizar, também, a mente. Por isso, depois de escovar os dentes, pus no spotify um jazz adequado  à leveza matutina,  liguei o chuveiro em uma água morna que me fez ter muita vontade de ter uma banheira em casa e coloquei na tomada um aromatizador de ambientes que ganhara de um amigo “místico” no meu último aniversário. 

O aroma que escolhi foi o de tuberosa. Eu nada entendo de botânica, mas escolhi aquele porque, ao aproximá-lo do nariz, me veio uma vívida memória das pétalas perfumadas do jardim da minha avó. 

Me enxuguei, vesti um confortável moletom e fui sentar na poltrona reclinável da varanda do meu apartamento, que era protegida da chuva por uma cortina de vidro. Apesar do céu gris e da janela embaçada pelos pingos da chuva, era bonita a paisagem lá fora.

Levei comigo o jazz, o aroma de flores e a saudade da minha avó e do aconchegante e bonito ambiente de sua casa. Deixei o celular e tudo o que pudesse me distrair das minhas reminiscências e em vez de um livro, como sugere Djavan para os dias frios, levei um caderno de desenho e uma caixa de lápis de cor que comprei para mim mesmo da última vez que fui numa livraria. 

Antes de desenhar qualquer coisa, fechei os olhos para melhor me transportar ao ontem que minha mente desenterrara. 

Vi com muita clareza a casa dos meus avós do Olho d’água, que em tudo se diferenciava do apartamento sóbrio e urbano que eu hoje habito.  A começar pelo vasto e colorido jardim que a circundava, cuidado amorosa e pacientemente pela minha vó, cujas mãos para flor eu infelizmente não herdei. 

Não era só no jardim que a casa era cheia de cor e beleza. Apesar de longe do Centro Histórico, as paredes externas da casa eram revestidas de azulejos portugueses azuis, havia um portão preto também típico da arquitetura colonial e em que constavam as iniciais do meu bisavô, que foi quem o fez. No interior, em vez de uma decoração harmônica e discreta, o que havia era uma miscelânea que misturava objetos de variadas épocas, que iam desde porcelanas que os meus avós ganharam de presente de casamento, lembranças de variadas viagens que eles ou os seus filhos fizeram e quadros ou fotografias que eles simplesmente acharam bonitos.

Mas não são esses os detalhes que fazem essa memória me ser tão preciosa. São os gestos singelos e afetuosos sempre presentes na convivência com os meus avós. 

Já não havia tantos beijos e abraços quanto na primeira infância , mas esse afeto se mostrava de vários outros modos. Dentre os mais agradáveis, me recordo do cheiro de bolo que eu sempre sentia na cozinha da minha vó nos sábados à tarde. 

Depois que eu disse a ela que o melhor momento da minha semana era o café com bolo e/ou beiju dos sábados ou domingos à tarde na sua casa, minha vó passou a caprichar ainda mais em seu talento culinário. Bolo de cenoura com calda de chocolate, bolo de tapioca, bolo de laranja… Uma variedade de aromas e sabores que aquele forno produzia e que juntos às cores e perfumes das flores e às agradáveis conversas que tínhamos durante os lanches naquela cozinha - ou  mesmo na varanda, se o tempo não estava muito quente ou chuvoso - tornavam,  mais uma vez,  o singelo inesquecível. 

Antes que eu tivesse percebido,  havia feito vários desenhos no caderno. A frente da casa, o flamboyant com suas flores vermelhas, as xícaras e os pratos com beijus e bolos e outros pequenos detalhes cujos retratos estavam longe de ser minimamente parecidos com o real , mas que foram suficientes para marejar meus olhos. 

Hoje minha avó já não consegue mais fazer bolos ou beijus pra mim e já não pode cuidar pessoalmente do jardim da casa do Olho d'água. Mas ainda bem que ainda é manhã. 

Vai dar tempo de preparar um bolo e levar pro Olho d'água.

Em vez de passar o dia em casa, na companhia apenas das minhas doces lembranças, mudei de ideia e decidi enfrentar a chuva pra ir fazer mais algumas. 

Só preciso levar o bolo porque o café vovó ainda dá conta de fazer. 

(Felipe José, 20 de fevereiro de 2023)


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