Ainda há
Acordou cedo hoje. Antes do galo, ou talvez com ele.
Mas o meu espanto não foi com esse despertar prematuro.
Foi vê-la impostando sua voz retumbante após longos anos de
cantares tímidos que mais se aproximavam do silêncio e do assobio.
Vestia o seu xale vermelho, que eu achava que ela já não
tinha, e cantava um fado triste e pungente como todos os outros que outrora
compunham o seu cotidiano lisboeta.
Se não soubesse que o juízo de minha mãe andava melhor que o
meu, apesar de mais de oitenta, pensaria que se tratava do delírio senil de
quem pensava ainda estar na mocidade.
Disso não se tratava, todavia.
Tive mais certeza quando vi que meu pai a acompanhava no
violão, como fazia nas casas de fado dos dias de antigamente.
Talvez fosse saudade da terra natal, pois que já faziam dois
anos que eles passaram a viver comigo no Brasil.
Talvez tenha sido um sonho que cutucara suas memórias de
vida noturna.
Seja qual fosse o motivo do sarau matutino (que, tenho
certeza, emocionou outros corações desavisados além do meu), o que havia de
mais precioso no canto forte e contagiante que vazava pela janela e alcançava o
mar ali defronte e que fizera meus olhos marejarem, é que ele carregava uma
mensagem igualmente tocante:
Aqui há alguém que ainda vive.
Aqui há um peito que ainda pulsa.
Aqui há uma voz que ainda canta!
(Felipe Rocha, 10 de setembro de 2019)
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