Futuros amantes*
"Não se afobe, não, que nada é pra já
O amor não tem pressa, ele pode esperar em silêncio
Num fundo de armário
Na posta-restante, milênios
Milênios, no ar
E quem sabe, então o Rio será
Alguma cidade submersa
Os escafandristas virão
Explorar sua casa
Seu quarto, suas coisas
Sua alma, desvãos
Sábios em vão entarão decifrar
O eco de antigas palavras
Fragmentos de cartas, poemas
Mentiras, retratos
Vestígios de estranha civilização
Não se afobe, não, que nada é pra já
Amores serão sempre amáveis
Futuros amantes, quiçá
Se amarão sem saber
Com o amor que eu um dia
Deixei pra você
Não se afobe, não, que nada é pra já
Amores serão sempre amáveis
Futuros amantes, quiçá
Se amarão sem saber
Com o amor que eu um dia
Deixei pra você"
(Chico Buarque)
Só mesmo aqui no Rio de Janeiro podemos ser nós mesmos. Esse teu doutorado em local tão distante da nossa terra natal veio bem a calhar. Não era para ser assim. Já estamos no terceiro milênio e nossos parentes e vizinhos ainda insistem em ver como pecado o namoro de dois homens, não importa o quão profundo e verdadeiro seja o amor que os une.
Ainda bem que, assim como eu, tu também não te incomodas que nós e o nosso amor permaneçamos em silêncio, no fundo do armário. Não há por que nos afobarmos.
Meu analista certa vez me disse que achava que a nossa postergação se devia mais a uma introjeção inconsciente da reprovação que nos rodeia, sendo o fato de eu ser uma pessoa pública e a existência dos teus filhos adolescentes meros pretextos que nós utilizaríamos até substituí-los por outros. Estaria ele certo? Talvez. Eu tenho pra mim que a nossa acomodação vem é da concepção moral que compartilhamos de que simplesmente não é justo nós sermos “crucificados” por uma sociedade conservadora e intolerante em razão de um abstrato “dever” de sermos “honestos” junto aos nossos.
O que importa mesmo é que eu tu sabemos que o amor – qualquer amor - é bom e é belo. Como disse um sábio trovador, “amores serão sempre amáveis”. Mesmo quando errados os amantes, seus amores serão bons.
Se é tão importante abrir o jogo, talvez eu o faça “post mortem”, através de uma espécie de um livro ou carta testamento dedicada não àqueles hipócritas que convivem conosco, mas aos futuros amantes que enfrentem problemas semelhantes aos nossos e que vejam na nossa história a inspiração necessária para terem coragem de lutar por um romance verdadeiro. Como as antigas postas-restantes que ficavam esperando os seus destinatários nos correios enquanto se empoeiravam e amarelavam.
Estas reflexões enquanto passeio pela orla carioca de mãos dadas contigo me fizeram pensar no que o meu analista diria do sonho que tive ontem, em que um grande tsunami afogava o Rio de Janeiro, como a Atlântida dos contos de Platão.
Também como a cidade da lenda, o Rio submerso era encontrado milênios mais tarde, por escafandristas curiosos e ávidos por tesouros de valor material ou histórico. Até que um deles entrou na tua casa - que hoje é o nosso espaço de liberdade -, e revirou o teu quarto, teu guarda-roupa, tuas gavetas e até o desvão que separava o telhado do forro.
Não encontrou nada que o deixasse rico, mas se surpreendeu com os poemas e cartas que escrevíamos um ao outro, com os retratos que, ora mostravam o quanto o nosso romance vicejava e ora revelavam a mentirosa história do pai divorciado que nunca mais encontrara o amor.
Por viver em um momento em que incompreensível seria repreender duas pessoas pelo simples fato delas se amarem, o mergulhador não entendeu nada dessas narrativas contraditórias e as levou para um sábio, que, entretanto, também não conseguiu decifrar aqueles vestígios de uma estranha civilização. Estaria ele certo? Talvez. Mas, como eu já disse: não há por que nos afobarmos; nada é pra já.
Enquanto não sinto esse sentimento de urgência, prefiro aproveitar essa tarde carioca, tomando um café na confeitaria Colombo com o meu amor, assistindo a esse pôr do Sol que, como disse o mesmo trovador que mencionei antes, “quase arromba a retina de quem vê”.
*Texto livremente inspirado na música “Futuros amantes”, do Chico Buarque
(Felipe Rocha, 20 de setembro de 2019)
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