Dois pães massa grossa
Começou a
pandemia. Pânico coletivo, incertezas e desgoverno incompetente. Me veio crise
de ansiedade e solidão, já que sem namorada, longe de casa porque graduando e
estagiário que não teve folga, só teletrabalho.
Moro em casa
alugada, barata porque no centro da cidade, sem condomínio. Melhor momento do
dia é o “Bom dia, Thiago!”, da dona Margarida, sempre que vou comprar o pão
quentinho na padaria que também é nossa vizinha.
Desde o começo
da pandemia não vejo sua filha, companheira da fila do pão, com quem já tentei
infrutífera paquera, apesar de mais velha, e que sempre levava o dela. Pelo
estranhamento da ausência, perguntei à Dona Margarida por onde andava sua
filha. Descobri, então, que, por ser enfermeira intensivista, andava longe da
casa da mãe. Ainda não havia sequer vacina na época.
Sem pensar muito,
dei a ela o saco de pão que havia comprado e, antes de dar tempo dela me
devolver, voltei à padaria dizendo que agora ia comprar o meu.
Passou a ser
nosso rito diário. Pegava o meu “Bom dia, Thiago!” e estendia a mão como guri
que pede “a bença” pra vó e ela me dava as moedinhas dos seus dois pães massa grossa
matutinos. Passou a ser o melhor momento do meu dia (eu já disse isso?). O
único em que havia interação real com gente, inclusive.
Depois de umas
duas semanas assim, ela me perguntou se eu gostaria de tomar café da manhã com
ela, em sua casa. Titubiei, mas aceitei quando ela disse que não suportava
tomar café da manhã sozinha. Talvez pra me deixar mais à vontade, ela montou
uma mesinha na varanda da casa, até com frutas e geleia, coisa que eu só comia
em café da manhã de hotel, por sempre estar com pressa pra começar logo o
trabalho e/ou os estudos em casa.
Senti muito a
sensação de casa de vó, vendo aquela senhora de chambre e que até louça e
toalha punha na mesa do café. Apesar de estar sempre de máscara e de evitar o
contato físico, aquele era o momento de ternura que havia na minha rotina.
Eu, que falo
pelos cotovelos, me punha a ouvir as histórias antigas que ela gostava de
contar daquela rua em que ela sempre morou ou da própria família. Descobri que
a filha chamava Matilde porque, certa vez, ela ligou pro celular da dona
Margarida na hora do café.
Era muito bom
ter muito mais que o “Bom dia, Thiago!”, principalmente depois que ela me revelou
que aquele também era o momento preferido do seu dia.
Com o tempo,
passamos a tomar café na sala da casa dela mesmo, em que tudo, desde a mobília
até os aromas, era antigo, mas não anacrônico. Conheci os rostos dos seus
parentes de variados graus, que estavam estampados nas fotografias dos
porta-retratos. E até cheguei a me balançar na cadeira de balanço que um dia
foi do seu finado marido.
Quando maio
chegou, soube que não ia dar certo voltar pra minha terra pro dia das mães por
causa dos preços da passagem. Mas não fiquei por baixo. Como eu já tinha
separado um dinheirinho pra fazer um exame de COVID e descobrir se era seguro
abraçar os meus pais, resolvi fazê-lo, mesmo não indo.
Quando chegou o
segundo domingo do mês, levei, além do pão, umas flores pra Dona Margarida e um
abraço que, pelas lágrimas mútuas que gerou, até hoje não sei se quem estava
precisando mais dele era ela ou era eu.
(Felipe Rocha,
22 de abril de 2021)
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